FALLUJAH ESQUECIDA
Por David Swanson
Não
sei se a maioria das pessoas nos Estados Unidos soube alguma vez, o que
significava Fallujah. É difícil acreditar que, se elas soubessem, as forças
armadas dos EUA ainda existissem. Mas, claro que foi em grande parte esquecido
- um problema que poderia ser remediado se todos pegassem uma cópia do livro ‘The Sacking of Fallujah: A People's History’,
de Ross Caputi (um veterano dos EUA num dos cercos de Fallujah), Richard Hill,
e Donna Mulhearn.
“Bem-vindos para servir!”
Fallujah
era a “cidade das mesquitas”, com uma população de cerca de 300.000 a 435.000
pessoas. Tinha a tradição de resistir a invasões estrangeiras – incluindo invasões
britânicas. Sofreu, assim como todo o Iraque, sanções brutais impostas pelos
Estados Unidos nos anos que antecederam o ataque de 2003. Durante esse ataque, Fallujah
viu mercados abarrotados serem bombardeados. Após o colapso do governo
iraquiano em Bagdad, Fallujah formou o seu próprio governo, evitando o saque e
o caos vistos noutros lugares. Em Abril de 2003, a 82ª Divisão Aerotransportada
dos EUA mudou-se para Fallujah e não encontrou resistência.
A
ocupação começou, imediatamente, a produzir o género de problemas que surgem em
cada ocupação, em qualquer lugar. As pessoas queixavam-se da circulação, nas
ruas, de veículos militares a alta velocidade, de serem humilhadas nos postos
de investigação e segurança, de mulheres tratadas inadequadamente, de soldados
a urinar nas ruas e de soldados em pé nos telhados com binóculos, violando a
privacidade dos moradores. Em poucos dias, o povo de Fallujah ansiava ser
libertado dos seus “libertadores”. Assim, o povo tentou demonstrações não
violentas. E os militares dos EUA dispararam contra os manifestantes. Mas, finalmente,
os ocupantes concordaram em estacionar fora da cidade, limitar as suas
patrulhas e permitir a Fallujah uma certa auto governação acima do que era
permitido no resto do Iraque. O resultado foi um sucesso: Fallujah foi mantida
mais segura do que o resto do Iraque, mantendo os ocupantes fora dela.
É
claro que esse exemplo precisava ser esmagado. Os Estados Unidos estavam a reivindicar
a obrigação moral de libertar o inferno para fora do Iraque, para “manter a
segurança” e “ajudar na transição para a democracia”. O Vice Rei, Paul Bremer,
decidiu “limpar Fallujah”. Em seguida vieram as tropas da “coligação”, com a sua
incapacidade habitual (ridicularizada com bastante eficiência no filme War Machine, de Brad Pitt, na Netflix) de
distinguir pessoas às quais eles estavam a conceder liberdade e justiça, das
pessoas que estavam a matar. As autoridades americanas descreveram as pessoas
que queriam matar como “cancro” e liquidaram-nas com ataques e tiroteios que dizimaram
muitas pessoas não cancerosas. Na época, desconhecia-se a quantas pessoas os
Estados Unidos estavam realmente a provocar cancro.
Em
Março de 2004, quatro mercenários de Blackwater foram mortos em Fallujah, os seus
corpos foram queimados e pendurados numa ponte. A comunicação mediática americana
retratou os quatro homens como sendo civis inocentes que, de alguma forma, se
encontravam no meio de uma guerra e foram alvos acidentais de violência
irracional e desmotivada. As pessoas de Fallujah eram “bandidos”, “selvagens” e
“bárbaros”. Como a cultura dos EUA nunca se arrependeu de Dresden ou Hiroshima,
houve clamores abertos por seguir esses precedentes em Fallujah. Um antigo assessor
de Ronald Reagan, Jack Wheeler, inspirado num antigo modelo romano, exigiu que
Fallujah fosse completamente reduzida a escombros sem vida: “Fallujah delenda
est!”
Os
ocupantes tentaram impor a hora de recolher e a proibição de uso e porte de
armas, dizendo que precisavam de tais medidas para distinguir as pessoas a quem
matar, das pessoas a quem dar a democracia. Mas quando as pessoas tinham de
deixar as suas casas para ir buscar comida ou remédios, elas eram abatidas.
Famílias inteiras foram abatidas, uma a uma, quando cada pessoa surgia para
tentar recuperar o corpo ferido ou sem vida de um ente querido. Foi designado
como o “jogo da família”. O único estádio de futebol da cidade foi transformado
num enorme cemitério.
Um
menino de sete anos chamado Sami viu a sua irmã mais nova ser atingida. Viu o seu pai correr para fora da casa para agarrá-la e, por sua vez, ser atingido.
Ouviu o seu pai gritar, em agonia. Sami e o resto de sua família tinham medo de
sair. De manhã, a irmã e o pai estavam mortos. A família de Sami ouviu tiros e
gritos nas casas vizinhas, enquanto a mesma história se desenrolava. Sami lançou
pedras aos cães para tentar mantê-los longe dos corpos. Os irmãos mais velhos
de Sami não deixavam a mãe sair para fechar os olhos abertos do falecido
marido. Mas, finalmente, os dois irmãos mais velhos de Sami decidiram sair,
correndo para os corpos, na esperança de que um deles tivesse sobrevivido. Um
irmão foi atingido instantaneamente na cabeça. O outro conseguiu fechar os
olhos do pai e recuperar o corpo da irmã, mas foi ferido no tornozelo. Apesar
dos esforços de toda a família, aquele irmão teve uma morte lenta e horrível,
provocada pela ferida no tornozelo, enquanto os cães lutavam pelos corpos do
pai e do irmão, e o fedor tomava conta de um bairro de cadáveres.
A
TV Al Jazeera mostrou ao mundo alguns dos horrores do Primeiro Cerco de
Fallujah. Depois outros canais mostraram ao mundo a tortura em que os EUA
estavam empenhados em Abu Ghraib. Os Libertadores retiraram-se de Fallujah, culpando
a comunicação mediática e resolvendo comercializar melhor os seus futuros actos
genocidas.
Mas
Fallujah permaneceu um alvo designado, um objectivo que exigiria mentiras
semelhantes àquelas que lançaram toda a guerra. O público dos EUA foi informado
agora, que Fallujah era um dos focos da Al Qaeda controlado por Abu Musab
al-Zarqawi - um mito retratado anos depois, como se fosse verdade, no filme
norte-americano American Sniper.
O Segundo Cerco de Fallujah
foi um ataque total a toda a vida humana que incluiu o bombardeamento de casas,
hospitais e, ao que tudo indica, a qualquer alvo desejado. Uma mulher cuja irmã
grávida foi morta por uma bomba disse a um repórter: "Não consigo tirar a
imagem da cabeça do feto a ser expelido do seu corpo". No Segundo Cerco, em
vez de esperar que as pessoas saíssem das casas, os Fuzileiros Navais dos EUA dispararam
contra as casas com tanques e lança foguetes e terminaram o trabalho com
escavadoras, ao estilo dos israelitas. Também usavam fósforo branco nas
pessoas, o qual as derretiam. Destruíram pontes, lojas, mesquitas, escolas,
bibliotecas, escritórios, estações de comboios, centrais de eletricidade,
estações de tratamento de água e todos os sistemas de saneamento e comunicação.
Foi um sociocídio. As empresas de comunicação mediática, infiltradas e controladas,
desculparam tudo.
Um
ano após o segundo cerco, com a cidade transformada numa espécie de prisão a
céu aberto entre os escombros, os funcionários do Hospital Geral de Fallujah
notaram que algo estava errado. Houve um dramático aumento de cancros (pior do
que em Hiroshima), nadomortos, abortos espontâneos e defeitos congénitos nunca
antes vistos. Uma criança nasceu com duas cabeças, outra com um único olho no
centro da testa, outra com membros suplementares. Existem poucas dúvidas de que
a Guerra Humanitária seja a causa, de que parte da culpa do sucedido seja atribuída ao
fósforo branco, ao urânio empobrecido, ao armamento de urânio enriquecido, à abertura
de poços de queima de lixos nas zonas ocupadas pelos militares americanos e a diversas
outras armas.
As
incubadoras voltaram ao ponto de partida. Das mentiras sobre os iraquianos a
tirar bebés das incubadoras que (de alguma forma) justificaram a primeira
Guerra do Golfo, às falsidades sobre armas ilegais que (de alguma forma)
justificaram o terrorismo maciço do Choque e do Terror, chegamos agora às salas
cheias de incubadoras contendo bebés deformados, morrendo rapidamente, devido à
misericordiosa libertação americana.
O
Terceiro Cerco de Fallujah, levado a cabo pelo governo iraquiano instalado pelos
EUA, ocorreu em 2014-2016, com a nova versão para os ocidentais, referindo o
controlo de Fallujah pelo ISIS. Mais uma vez, os civis foram massacrados e o
que restou da cidade foi destruído. Fallujah delenda est, de facto. Não foi
mencionado que o ISIS foi originado por uma década de brutalidade liderada
pelos EUA, coroada com o ataque genocida do governo iraquiano aos sunitas.
Claro
que, enquanto tudo isto acontecia, os Estados Unidos estavam a liderar o mundo
- através da queima do petróleo, foram travadas guerras, entre outras
práticas – tornando, não só Fallujah, mas a maior parte do Médio Oriente, quente
demais para os humanos poderem habitar aí. Imaginem a indignação, quando as pessoas
que apoiam alguém como Joe Biden, que desempenhou um papel fundamental na
destruição do Iraque (e que parece nem se arrepender da morte do seu filho devida
a um * poço de combustão de lixo a céu aberto, muito menos da morte
de Fallujah) descobrirem que quase ninguém no Médio Oriente, está grato pela transformação do clima num inferno inabitável. Será, então, que a comunicação mediática nos
irá dizer quem são as verdadeiras vítimas desta história.
· *open burn pits –
poços de incineração de lixo a céu aberto em zonas militares
Tradutora: Maria Luísa de Vasconcellos
Email: luisavasconcellos2012@gmail.com
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